Juliana Monção Nippes Pereira
A síndrome do encarceramento (também denominada, na língua inglesa, como locked-in syndrome – LIS) é descrita como um estado no qual o paciente exibe quadriplegia e inabilidade de falar, em decorrência de um quadro severo de disartria. No entanto, dentre as peculiaridades dessa síndrome, destacam-se a preservação da consciência e a possibilidade, usualmente, de comunicação mediante movimentos verticais dos olhos e por meio do ato de piscar. Geralmente, a causa está associada ao comprometimento de tratos que conduzem informações motoras na porção ventral do tronco encefálico.
O termo locked-in syndrome foi cunhado em 1966 pelos neurologistas norte-americanos Jerome Posner e Fred Plum, durante seus estudos sobre estados de coma e consciência. No entanto, houve descrições anteriores na literatura acerca de personagens que apresentavam sinais dessa síndrome. O escritor francês Alexandre Dumas, em sua obra “O Conde de Monte Cristo” (1844), descreveu uma personagem, Monsieur Noirtier, que, provavelmente, era portador da LIS.
[...] nos olhos negros do velho Noirtier, [...] nesses olhos, como acontece com qualquer órgão do homem que funciona à custa doutros órgãos, tinham-se concentrado toda a atividade, toda a sagacidade, toda a energia, toda a inteligência, distribuídas outrora por aquele corpo e por aquele espírito. Claro que faltavam o gesto do braço, o som da voz, a atitude do corpo; mas aquele olhar poderoso supria tudo. Mandava com os olhos; agradecia com os olhos; era um cadáver com olhos vivos, e nada era por vezes mais aterrador do que aquele rosto de mármore no cimo do qual brilhava uma cólera ou uma alegria. (DUMAS, 1844, p. 566)
Atualmente, o prognóstico de um paciente diagnosticado com LIS tende a ser muito melhor e mais satisfatório do que a situação narrada no trecho de “O Conde de Monte Cristo”. Embora as possibilidades de recuperação da motricidade do corpo ainda sejam bastante limitadas, existem dispositivos tecnológicos que permitem ao paciente estabelecer um processo de comunicação baseado em sistemas computacionais controlados pelos movimentos dos olhos. Isso favorece uma melhoria da qualidade de vida das pessoas portadoras de LIS, haja vista que, por meio do uso desses dispositivos, elas se tornam capazes de administrar – ao menos parcialmente – o meio em que estão inseridas, além de ter acesso à internet e fazer uso de sintetizadores de fala. Contudo, a fim de compreender acerca das características clínicas da LIS, sua etiologia e as formas de abordagem terapêutica, faz-se necessário entender sobre a anatomia do tronco encefálico e sua relação com o surgimento de um quadro de LIS.
O tronco encefálico é uma estrutura que se divide em três segmentos anatômica e funcionalmente distintos, os quais são, de sentido caudal para cranial: bulbo, ponte e mesencéfalo. Situa-se entre a medula espinhal e o diencéfalo, além de se posicionar anteriormente ao cerebelo e posteriormente ao clivo do osso occipital, ocupando a porção mais ventral da fossa intracraniana posterior, acima da abertura que constitui o forame magno. É formado por feixes fibras nervosas (constituindo lemniscos, tratos e fascículos) e por corpos de neurônios, sendo que estes se agrupam em núcleos. Além disso, vale ressaltar que a maioria dos nervos cranianos emerge a partir do tronco encefálico.
Dentre os conjuntos de feixes de fibras que passam pelo tronco encefálico, três são caracteristicamente afetados na síndrome do encarceramento: os tratos corticoespinhal, corticopontino e corticobulbar. Essas fibras se originam no córtex cerebral e terminam estabelecendo conexões em neurônios motores localizados na medula espinhal, na ponte e no bulbo, respectivamente. O trato corticoespinhal é responsável por controlar a motricidade dos membros e atravessa os pedúnculos cerebrais no mesencéfalo, a base da ponte e as pirâmides bulbares, até chegar à medula; logo, lesões nessas estruturas tendem a ocasionar a síndrome do motoneurônio superior, marcada por paralisia espástica, com hiperreflexia, hipertonia e sinal de Babinski positivo. Por sua vez, as fibras do trato corticobulbar se conectam com neurônios do núcleo ambíguo, do núcleo do nervo trigêmeo e do núcleo do nervo facial; assim, entende-se que esse trato é responsável por mediar movimentos da boca, da mandíbula e da musculatura da faringe. Já as fibras corticopontinas fazem sinapses nos neurônios dos núcleos pontinos, cujos axônios dão origem às fibras transversais da ponte, que vão para o cerebelo passando pelo pedúnculo cerebelar médio.
Na LIS, o comprometimento dos tratos corticoespinhal, corticopontino e corticobulbar pode decorrer tanto de causas vasculares - sobretudo acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico ou isquêmico - quanto de causas não vasculares, a exemplo de esclerose múltipla, lesões traumáticas e tumores no tronco encefálico. No entanto, as complicações vasculares compõem a etiologia predominante dessa síndrome, conforme LAUREYS, S. et al. (2005). Neste caso, destacam-se hemorragias da ponte e oclusão da artéria basilar. Vale lembrar que o encéfalo é vascularizado por dois distintos sistemas de irrigação arterial: o sistema carotídeo interno, formado pelas artérias carótidas internas, que dão como ramos terminais as artérias cerebrais anterior e média, e o sistema vertebrobasilar, constituído pelas artérias vertebrais, que penetram o crânio atravessando o forame magno e, ao nível do sulco bulbopontino, unem-se e dão origem à artéria basilar. A artéria basilar, antes de se bifurcar nas artérias cerebrais posteriores, percorre o sulco basilar (situado na ponte) e, ao longo de seu percurso, emite a artéria cerebelar inferior anterior, a artéria do labirinto, os ramos pontinos e a artéria cerebelar superior. Essas estruturas vasculares que irrigam o encéfalo podem ser observadas na figura 1. Assim, entende-se que o comprometimento da artéria basilar (usualmente devido a processos de embolismo e trombose) dificulta a irrigação da porção ventral da ponte. Consequentemente, os tratos corticoespinhal, corticopontino e corticobulbar, cujas fibras passam por essa região, tendem a se tornar disfuncionais, ocasionando um quadro de LIS.
Figura 1 - Artérias do encéfalo em perspectiva inferior
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Fonte: NETTER, F. H. Atlas de Anatomia Humana. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. Citado por: <https://www.auladeanatomia.com/novosite/sistemas/sistema-nervoso/vascularizacao/>. Acesso em: 14 set. 2019.
Apesar de a ponte ser, de acordo com LEÓN-CARRIÓN, J. et al. (2001), a região mais comumente afetada na síndrome do encarceramento, a lesão de outras áreas do tronco encefálico também pode acarretar um surgimento de LIS. Infartos no mesencéfalo e danos nos pedúnculos cerebrais já foram descritos na etiologia da síndrome em questão. Obstruções da artéria basilar podem gerar isquemia na base e no tegmento da ponte, mas a primeira área é mais vulnerável que a segunda por conta da falta de circulação colateral. Nos casos de hemorragia pontina, verifica-se que esta é decorrente, predominantemente, de hipertensão ou de malformações vasculares.
Compreender os fatores etiológicos da LIS possibilita o entendimento de suas características clínicas. Dessa forma, observa-se que, como a síndrome do encarceramento decorre mais comumente do comprometimento da região ventral da ponte, embora haja quadriplegia, os movimentos verticais dos olhos e a capacidade de piscar permanecem preservados. Isso se deve ao fato de que as vias motoras oculares pré-nucleares (responsáveis por transmitir informações que deflagram a movimentação dos olhos) situam-se em uma porção mais dorsal do tronco encefálico. Ademais, é importante considerar que, a depender da extensão da lesão, pode se manifestar, na LIS, uma desregulação do ciclo de sono e vigília, haja vista que este é controlado por neurônios da formação reticular – a qual ocupa uma grande área central do tronco encefálico. No entanto, em decorrência de a LIS estar associada apenas a lesões do tronco encefálico, funções cognitivas não são afetadas, e o paciente permanece consciente.
A síndrome do encarceramento é uma condição clínica difícil de ser diagnosticada, haja vista que pode ser confundida com coma, estupor, estado vegetativo persistente, catatonia, mutismo acinético e outras desordens neurológicas e psiquiátricas. Sendo assim, para que o diagnóstico seja feito, é imprescindível analisar o estado de consciência do paciente, bem como seus níveis de alerta, a preservação das funções cognitivas e a capacidade de realizar movimentos (sobretudo os verticais) dos olhos. Além disso, exames de ressonância magnética contribuem para a verificação da presença de tumores, abscessos e contusões na região do tronco encefálico, enquanto a angiografia por ressonância magnética permite a identificação da presença de oclusões nas artérias do pescoço e nos vasos intracranianos.
No tocante ao tratamento, verifica-se que as diferentes causas etiológicas da LIS devem ser tratadas com terapias específicas, visando evitar um agravamento do quadro e, por conseguinte, buscando garantir um melhor prognóstico para o paciente. Dessa forma, para infartos isquêmicos devidos a trombose, embolismo ou oclusão de artérias do sistema vertebrobasilar, usam-se, em geral, técnicas de recanalização dos vasos e administração de fármacos fibrinolíticos. Já para as etiologias não vasculares, é importante empregar medidas apropriadas, a exemplo de quimioterapia em situações de tumores no tronco encefálico.
É importante ressaltar que, embora seja uma condição rara, já foi descrito reversão dos quadros em pacientes com LIS. Ademais, exercícios de respiração profunda, fisioterapia e técnicas para ajudar no ato da deglutição promovem significativa melhoria da qualidade de vida do paciente. Relativamente à comunicação dos pacientes, observa-se que movimentos oculares nos sentidos vertical e horizontal, além do ato de piscar, podem ser utilizados com o intuito de estabelecer um código simples de sim/não. Aparelhos eletrônicos, tais como computadores especializados e máquinas que produzem voz sintética acoplando-se a mecanismos sensitivos ao movimento dos olhos, permitem uma maior interação com outras pessoas e com o meio virtual.
Portanto, a síndrome do encarceramento é classicamente marcada pela incapacidade de se movimentar e de falar, bem como pela preservação da consciência e de movimentos dos olhos. A LIS se manifesta, mais comumente, em decorrência do acometimento da porção ventral da ponte, seja por conta de causas de origem vascular, como oclusão da artéria basilar, por exemplo, ou, então, devido a causas não vasculares, tais como a formação de um tumor na região correspondente ao tronco encefálico. Cabe analisar, nesse contexto, que o desenvolvimento e o emprego de aparelhos tecnológicos que podem ser utilizados pelo próprio paciente permitem que ele se comunique tanto por voz sintética quanto por mensagens virtuais.
REFERÊNCIAS
CAPLAN, L. R. Locked-in syndrome. UpToDate. 17 abr. 2017. Disponível em: <https://www.uptodate.com/contents/locked-in-syndrome?search=locked%20in%20syndrome&source=search_result&selectedTitle=1~50&usage_type=default&display_rank=1>. Acesso em: 14 set. 2019.
DUMAS, A. O conde de Monte Cristo. <https://www.livros-digitais.com/alexandre-dumas/o-conde-de-monte-cristo/566>. Encontrado em: 15/08/2019.
LAUREYS, S. et al. The locked-in syndrome: what is it like to be conscious but paralyzed and voiceless? Progress in brain research, Lieja, vol.150, 2005.
LEÓN-CARRIÓN, J. et al. The locked-in syndrome: a syndrome looking for a therapy. Brain Injury, Sevilha, vol. 16, n. 7, p. 576-582, 2002.
MACHADO, A.; HAERTEL, L. M. Neuroanatomia funcional. 3 ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2014.
MAISER, S. et al. Locked-in syndrome #303. Journal of palliative Medicine, Minneapolis, v.19, n.4, 2016.
NETTER, F. H. Atlas de Anatomia Humana. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. Citado por: <https://www.auladeanatomia.com/novosite/sistemas/sistema-nervoso/vascularizacao/>. Acesso em: 14 set. 2019.
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