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Colecistectomia e considerações sobre variações anatômicas das vias biliares e estruturas adjacentes

Hernan Henrique de Queiroz Soares, acadêmico do curso de medicina da UFMG


LITÍASE BILIAR E COLECISTECTOMIA


A litíase biliar é um dos problemas mais comuns do sistema digestivo. A prevalência de cálculos biliares, nos adultos, estimada mediante estudos epidemiológicos de necrópsia e de investigação clínica varia de 11 a 36%. Enquanto que estimativas baseadas em estudo de necropsia indicam que, aproximadamente, 50% dos pacientes idosos têm colelitíase aos 75 anos de idade (FRIEDMAN, 1993).


Na história natural da litíase biliar, 40 a 60% dos portadores de colelitíase são assintomáticos e destes a maioria dos pacientes permanecerá assintomática ao longo da vida enquanto que a incidência do desenvolvimento de sintomas varia de 10 a 30%, durante um seguimento de 2 a 15 anos (FRIEDMAN, 1993; SANTOS et al., 2008).


A colecistectomia (remoção cirúrgica da vesícula biliar) está indicada no tratamento da litíase biliar e suas complicações (colecistite aguda, coledocolitíase, colangite, pancreatite aguda biliar) e nas neoplasias da vesícula biliar. Este é um procedimento cirúrgico realizado desde o fim do século dezenove, mas que passou por muitas inovações em seus princípios técnicos nos últimos 25 anos, especialmente, em relação ao acesso cirúrgico. Inicialmente o acesso era via laparotomia, hoje a videolaparoscopia é o padrão-ouro para o procedimento, sendo os benefícios do acesso videolaparoscópico incontestáveis (SANTOS et al., 2008).


A mortalidade após colecistectomia é baixa, 0,1% para o acesso por videolaparoscopia e 0,5% para o acesso por laparotomia, onde as complicações cardiorrespiratórias são mais frequentes. Enquanto que a recuperação do paciente na colecistectomia por laparotomia é mais lenta e envolve internação hospitalar de dois a três dias, quando ocorre por via laparoscópica a operação pode ser feita em regime ambulatorial e o retorno as atividades laborais, em geral ocorre mais cedo. A maior desvantagem da colecistectomia via laparoscópica é a incidência mais elevada de lesão traumática da via biliar pois este procedimento requer cautela e capacitação para minimizar a incidência de lesões traumáticas da via biliar e de outras estruturas.


Um importante estudo comparativo entre as duas técnicas realizado no Academic Medical Center em Amsterdã e University Hospital em Maastricht que avaliou no total 11.712 colecistectomias, sendo 2.932 por via laparoscópica e 8.780 por via tradicional apontou uma porcentagem maior de lesões em vias biliares chegando a 1,09% em procedimentos por via laparoscópica contra 0,51% relacionado ao método por laparotomia. Acredita-se que a razão desta diferença está principalmente relacionada a curva de aprendizagem do cirurgião em relação à técnica cirúrgica, bem como a maior dificuldade no reconhecimento das estruturas relacionadas as vias biliares e estruturas adjacentes. Entretanto outros fatores que independem da técnica utilizada podem contribuir para aumento do risco de lesões iatrogênicas dos ductos biliares e estruturas próximas, como por exemplo a colecistite aguda, vesícula escleroatrófica, dificuldade de acesso oportuno ao tratamento e, reoperações executadas por profissionais sem formação especializada (PINOTTI et al., 2000).


LESÕES IATROGÊNICAS DAS VIAS BILIARES


O risco de lesão do ducto biliar (e outras estruturas) durante a colecistectomia continua a ser preocupante, apesar dos esforços propostos para aumentar a segurança do procedimento. Como afirmaram Moore e colaboradores (2013), o método de dissecação cuidadosa do trígono cisto-hepático por exemplo, no início da colecistectomia é uma forma de evitar lesões iatrogênicas de estruturas importantes como os ductos císticos e o hepático comum, em caso de variação anatômica. O estudo completo da anatomia comum e das principais variações anatômicas da região também devem ser considerados para o aumento da segurança no procedimento (PINOTTI et al., 2000).


Como será relatado a seguir, observa-se na literatura diversos estudos realizados abordando este tema, onde há relatos baseados de variações comuns da anatomia do sistema biliar, sobretudo na sua vascularização. VARIAÇÕES DA ARTÉRIA CÍSTICA


A artéria cística faz a vascularização da vesícula biliar e do ducto cístico. Na colecistectomia, antes de remover a vesícula biliar, o cirurgião realiza a ligadura da artéria cística. Esta pode se apresentar sob diversas variações anatômicas, Cavalcanti et al. (2002) por exemplo identificou em estudo anatômico de cadáveres que apenas 56% destes apresentavam a artéria cística localizada dentro do Trígono cisto hepático, sendo que em 30% destes a artéria cística era a única estrutura vascular presente no trígono.



Figura 1: Principais variações anatômicas da artéria cística. A. Origem e trajeto normais. B. Artéria cística dupla. C. Artéria cística originando da artéria hepática própria e cruzando anteriormente a via biliar D. Artéria cística originando-se da artéria hepática direita e cruzando anteriormente a via biliar E. Artéria cística originando-se da artéria hepática esquerda e cruzando anteriormente via biliar F. Artéria cística originando-se da artéria gastroduodenal. G: Origem no tronco celíaco. H: Origem na artéria hepática direita. (DEMATTEO, 2006)






VARIAÇÕES DA ARTÉRIA HEPÁTICA


A anatomia mais frequente da artéria hepática ocorre quando o tronco celíaco com origem na aorta ramifica-se em artéria gástrica esquerda, artéria esplênica e artéria hepática comum (NETTER, F. H. 2011; MOORE, K. L. et al, 2013). Esta última, após a emergência da artéria gastroduodenal, continua-se como artéria hepática própria e ramifica-se em artéria hepática direita e esquerda no hilo hepático. Porém, segundo a literatura, Variações neste sistema arterial ocorrem aproximadamente entre 25 e 42% (SEBBEN, G. A. et al, 2012).



Figura 2: LHA=artéria hepática esquerda; RHA=artéria hepática direita; PHA=artéria hepática própria; GDA=artéria gastroduodenal; PV=veia porta; LGA=artéria gástrica esquerda; SA=artéria esplênica; SMA=artéria mesentérica superior; rRHA=artéria hepática direita substituta; aRHA=artéria hepática direita acessória; HMT=tronco hepatomesentérico. A: RHA normal originada do tronco principal da artéria hepática própria (mais comum). B: RHA aberrante provenientes da artéria mesentérica superior. C: RHA acessórias proveniente da SMA. D: Origem da artéria hepática proveniente do tronco hepatomesentérico. E: RHA substituta e oriunda diretamente do tronco celíaco. (BALZAN et al., 2019).


VARIAÇÕES DOS DUCTOS CÍSTICOS


A disposição da via biliar tida como normal é composta por ductos hepáticos direito e esquerdo de confluência alta, pela presença de um ducto hepático comum de aproximadamente 2 a 3cm de comprimento e pela inserção do ducto cístico em ângulo agudo, originando o ducto colédoco com cerca de 3cm ou mais de comprimento.


O ducto cístico conecta a vesícula ao ducto hepático comum, possui de 2 a 4 cm de comprimento, entretanto o ducto cístico é o que sofre maior número de variações no que diz respeito ao seu comprimento, diâmetro e desembocadura. (YASOJIMA et al., 2002).



Figura 3: Variações do ducto cístico. A: União com ducto hepático comum em porção final. B: Aderência ao ducto hepático comum. C: União ao ducto hepático comum próxima ao fígado. D: Ausência de ducto cístico ou muito pequeno. E: Cruzamento anterior do ducto cístico para se juntar ao ducto hepático comum. F: Cruzamento posterior do ducto cístico para se juntar ao ducto hepático comum (NETTER, F. H. (2011) (modificado).


DUCTOS BILIARES ABERRANTES OU ACESSÓRIOS

É uma variação anatômica da árvore biliar com relevância clínica. Ductos biliares ou acessórios podem ser indevidamente ligados durante a colecistectomia laparoscópica ou ainda complicar cirurgias como por exemplo transplantes hepáticos com doador vivo.



Figura 4: Ductos acessórios ou aberrantes e suas variações. A: União ao ducto hepático comum. B: União ao ducto cístico. C: União ao ducto colédoco. D: União à vesícula biliar. E: Dois ductos hepáticos acessórios (NETTER, F. H. (2011) (modificado).


VARIAÇÕES DA VESÍCULA BILIAR


A vesícula biliar tem grande relação com uma multiplicidade de variações anatômicas sendo a vesícula biliar duplicada a mais frequente. Esta é uma anomalia congênita rara, com incidência de 1: 4000 nascimentos. Apesar de rara, é uma condição que vem sendo descrita há muito tempo. Em humanos, tem como característica predominante uma vesícula biliar dupla, com dois ductos císticos, cuja vesícula acessória surge como crescimento secundário do ducto cístico ou do ducto colédoco (PIMENTA et al., 2019).



Figura 5: Variações anatômicas da vesícula biliar (número). A-C e E: Duplicação. D: Ducto cístico acessório. (GLASSMAN, J. A. 1989).


IDENTIFICAÇÃO DA LESÃO IATROGÊNICA DE VIAS BILIARES


A sintomatologia da lesão iatrogênica de vias biliares (LIVB) pode ser diversa. No período pós-operatório imediato, dor inespecífica em abdome superior, dor irradiada para o ombro, náuseas e hipertermia podem representar indícios clínicos de complicação. Icterícia, dor abdominal, dilatação de vias biliares, coleções fluidas decorrentes de fístulas biliares também são alterações que podem estar associadas ao comprometimento de vias biliares durante o procedimento cirúrgico. Como consequências mais graves da LIVB podemos citar o surgimento de quadros de abscesso hepático, colangite recorrente e cirrose biliar secundária decorrência de uma obstrução parcial da via biliar, e podem ter um impacto negativo muito grande na qualidade de vida do paciente, chegando a um quadro de doença hepática em estágio terminal, levando o mesmo a fila de transplante hepático (FONSECA-NETO et al., 2017).


O diagnóstico da LIVB pode ser realizado tanto no intraoperatório (20 a 50% dos casos) quanto no pós. Estudos evidenciam que a colangiografia intraoperatória é uma importante ferramenta para detectar possíveis lesões iatrogênicas durante procedimentos cirúrgicos, embora não diminua a chance destes episódios ocorrerem. Em relação ao pós cirúrgico, A ultrassonografia pode ser utilizada, apesar de possuir menor sensibilidade. A tomografia e estudos direcionados para as vias biliares, como colangiopancreatografia por ressonância nuclear magnética, colangiografia trans hepática percutânea e colangiopancreatografia retrógrada endoscópica também são úteis para a identificação da anatomia, a localização da lesão e para o planejamento cirúrgico.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Doenças relacionadas as vias biliares que demandam a remoção cirúrgica da vesícula biliar são comuns na população adulta e idosa em todo o mundo. Nestes pacientes, variações anatômicas em arvore biliar e estruturas associadas são frequentes, e como consequência, pode ser necessária alteração na abordagem cirúrgica para ressecção adequada da vesícula biliar sem comprometimento de estruturas que devem permanecer intactas.

Desta forma durante a colecistectomia (seja ela por via laparoscópica ou laparotomia), o desconhecimento das variações anatômicas, além da pouca experiência do cirurgião podem contribuir para o aumento do risco de lesões iatrogênicas.

Portanto, é de extrema importância que o cirurgião se prepare para lidar com estas variações, podendo utilizar as amplas descrições em literatura científica, e ainda exames de imagem pré-operatórios para auxiliar na identificação destas variações e permitir a dissecção segura da vesícula biliar.

Da mesma forma, o emprego de técnicas como a colangiografia intraoperatória também podem servir como auxílio na detecção de eventuais lesões iatrogênicas ainda durante o procedimento cirúrgico, permitindo sua correção imediata e reduzindo chances de complicações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, I. B. F. et al. Variações anatômicas nas vias biliares presentes em intervenções cirúrgicas. Jornal interdisciplinar de Biociências, Piaui, v. 2, n. 1, p. 35-39, 14 jun. 2017.


BALZAN, S. M. P. et al. PREVALÊNCIA DE VARIAÇÕES ARTERIAIS HEPÁTICAS COM IMPLICAÇÕES EM PANCREATODUODENECTOMIA. ABCD. Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva, São Paulo, ano 3, v. 32, 21 out. 2019.


CAVALCANTI, J. S. et al. ESTUDO ANATOMOTOPOGRÁFICO DAS VIAS BILIARES EXTRA HEPÁTICAS E DO TRÍGONO CISTOHEPÁTICO. Acta Cirurgica Brasileira, São Paulo, ano 1, v. 17, 2 fev. 2002.


DEMATTEO, Ronald. Surgical and radiologic anatomy of the liver, biliary tract, and pancreas. In: BLUMGART, Leslie. Surgery of the Liver, Biliary Tract and Pancreas. 4. ed. [S. l.]: Saunders, 2006. v. 1, cap. SECTION I: LIVER AND PANCREATIC ANATOMY AND PATHOPHYSIOLOGY.


FONSECA-NETO, O. C. L. et al. Transplante hepático no tratamento de lesão iatrogênica de via biliar após colecistectomia: um estudo em centro de referência no Nordeste do Brasil. GED - Gastroenterologia Endoscopia Digestiva, [S. l.], v. 36, n. 3, p. 77-82, 5 set. 2017.


FRIEDMAN, G. D. Natural History of Asymptomatic and Symptomatic gallstones. The American journal of surgery, California, v. 165, p. 399-404, 15 set. 1993.


GLASSMAN, J. A. Biliary Tract Surgery: Tactics and Techniques. Nova Iorque: Macmillan Publishing, 1989. 385 p.


MOORE, K. L.; DALEY II, A. F. Anatomia orientada para a clínica. 7ª.edição. Guanabara Koogan. Rio de Janeiro, 2013


YASOJIMA, E. Y. et al. Anomalia da via biliar extra-hepática. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, fev. 2002.


NETTER, F. H. Atlas de anatomia humana. 5ª.edição. Elsevier. São Paulo, 2011.


PIMENTA, E. A. P. et al. Colecistectomia videolaparoscópica em vesícula biliar duplicada: relato de caso. Revista Eletrônica Acervo Saúde, [S. l.], v. 11, n. 10, p. 1-5, 10 jul. 2019.


PINOTTI, H. W. et al. Colecistectomia laparoscópica – estruturação de um modelo de trabalho. Revista do colégio Brasileiro de Cirurgiões, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 94-98, 9 mar. 2000.


SANTOS, J. S. et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicações para o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina, Ribeirão Preto, v. 41, n. 4, p. 449-64, 6 jun. 2008.


SEBBEN, G. A. et al. Variações da artéria hepática: estudo anatômico em cadáveres. Revisto do colégio brasileiro de cirurgiões, [S. l.], ano 3, v. 40, p. 221-226, 2012.



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