Por Carolina Sant’ Anna Filipin, acadêmica de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A dissecção aórtica é uma condição rara, porém, potencialmente letal. É uma das emergências cardiovasculares mais perigosas, com risco de mortalidade que aumenta em 1% a cada hora passada desde o início dos sintomas, sendo uma das principais causas de morte em pacientes com doenças aórticas. A epidemiologia da doença ainda é imprecisa, haja vista frequentes erros diagnósticos, baixa reportagem dos casos identificados e não confirmação do diagnóstico em pacientes que evoluíram agudamente para óbito. Entretanto, pesquisadores norte-americanos estimam uma ocorrência de 3 a 6 casos por 100.000, resultando em cerca de 10.000 mortes por ano nos Estados Unidos.
A dissecção aórtica pode ser classificada quanto à sua localização e à sua cronologia. A classificação de DeBakey, uma das mais antigas, preconiza a existência de três tipos de dissecção: tipo I, quando há acometimento da aorta ascendente e comprometimento de todos os segmentos da artéria; tipo II, quando os acometimentos são restritos à aorta ascendente; e tipo III, quando apenas a aorta descendente é afetada. Já a classificação de Standford, mais recente e simplificada, com vistas à uma melhor aplicação clínica, prevê dois tipos de dissecção: tipo A - dissecções que acometem a porção ascendente da aorta -, e tipo B - dissecções que afetam apenas a porção descendente da artéria.
Quanto a cronologia, a condição pode ser aguda, quando os sintomas duram menos de duas semanas e o diagnóstico é feito nesse intervalo temporal, ou crônica, quando há persistência dos sintomas por mais de duas semanas.
Figura 1. Classificação da dissecção aórtica de acordo com Stanford e DeBakey
Ainda não há certezas sobre os mecanismos pelos quais o acometimento da aorta se desenvolve, mas sabe-se que não se trata de um evento aleatório. Hipotetiza-se que a predisposição genética ativa mecanismos inflamatórios na parede arterial, ocorrendo danos na camada média, perda de células musculares lisas e lesões no tecido arterial, com enfraquecimento da parede da artéria. A parede enfraquecida pode se dilatar, levando à formação de um aneurisma. Por sua vez, o aneurisma gera um estresse mecânico na parede aórtica. Perante um episódio hipertensivo, como devido a esforço edemaciado ou emoção forte, o pico de pressão arterial pode elevar ainda mais o estresse sobre a parede da artéria, excedendo a capacidade resistiva do tecido arterial e, assim, levando à ruptura da camada íntima e à dissecção do vaso.
A dissecção também pode ocorrer sem formação prévia de aneurisma. Nesse caso, a parede enfraquecida, diante da ação do fluxo sanguíneo em alta pressão, pode sofrer danos na camada íntima, levando a seu rompimento.
Assim, o sangue passa a fluir pelo ponto em que a íntima se rompeu, preenchendo o espaço entre a camada íntima e a média de sangue, de modo a promover um sangramento dentro da parede da aorta e a separação das camadas do tecido. Como consequência, é formado um falso lúmen, por onde o sangue arterial passa a circular. A dilaceração na parede da artéria pode se propagar, tanto distal quanto proximal ou transversalmente. Essa propagação, porém, pode gerar diversas complicações, como rompimento das camadas mais externas da parede arterial, causando hemorragia com grave risco a vida, abertura em um segundo ponto de fraqueza da parede da artéria, com retorno do sangue ao lúmen verdadeiro, formação de trombo, insuficiência aguda da valva aórtica e formação de aneurisma. Ademais, no caso de sangue fluindo a alta pressão no interior do falso lúmen, pode haver compressão do lúmen verdadeiro, com complicações isquêmicas.
Figura 2. Possíveis fatores que instigam a ocorrência de dissecção aórtica aguda.
A apresentação clínica da dissecção aórtica é extremamente variável, o que pode tornar seu diagnóstico desafiador. O sintoma mais comum é dor no peito intensa, presente em cerca de 90% dos pacientes. Nas dissecções tipo A, a dor é mais comum na região subesternal, na porção anterior do tórax, enquanto nas dissecções tipo B, é mais prevalente na porção posterior do tórax, entre as escápulas, ou na região abdominal. A dor pode irradiar para o epigástrio, flancos e costas. Seu caráter pode ser descrito como dilacerante, com sensação do peito rasgando, sendo usualmente descrita como a pior dor já sentida pelo paciente, e tendo início, em geral, súbito. Cerca de 15% dos pacientes apresentam sintomas neurológicos, como paraplegia, síncope, déficit neuronal e paresia. A dissecção é mais frequente em homens acima dos 60 anos, e tem a hipertensão arterial como um dos principais fatores de risco - está presente em cerca de 70% dos casos.
Ao exame físico, podem estar presentes sinais de choque cardiogênico e de insuficiência aórtica aguda. O paciente pode apresentar-se pálido, com sudorese, hipo, normo ou hipertenso. Medidas de pressão arterial diferentes entre os membros é um achado sugestivo de dissecção. Pode haver deficiência de algum pulso periférico, e murmúrios diastólicos são frequentemente auscultados.
O diagnóstico pode ser confirmado por exames de imagem, especialmente tomografia computadorizada, ressonância magnética e ecocardiograma transesofágico ou transtorácico. O raio X pode conter alterações, entretanto, são, geralmente, achados inespecíficos.
Figura 3. Tomografia computadorizada de dissecção aórtica tipo A. (A) Dissecção aórtica tipo I, com lúmen verdadeiro (seta amarela pequena) e falso lúmen (seta amarela maior) envolvendo o arco aórtico ascendente. (B) Dissecção aórtica com hematoma.
Ressalta-se a existência de dissecções aórticas indolores, em que a apresentação clínica cursa com ausência de dor e de sintomas clássicos da dissecção. Nesses casos, são encontrados com frequência sintomas neurológicos, dispneia, diferenças nas medidas de pressão arterial entre os membros e ausculta com murmúrio diastólico. Exames de imagem, como raio X, tomografia computadorizada (figura 3A) e ressonância magnética, comumente revelam alterações indicativas de dissecção. Essas ocorrências indolores são, em geral, dissecções do tipo A, e merecem atenção especial do profissional de saúde pelo seu caráter emergencial e de diagnóstico difícil.
Tratamento
As dissecções tipo B são geralmente tratadas com terapia farmacológica, com uso de analgésicos, para controle da dor, e de anti-hipertensivos, para redução da pressão arterial e da velocidade de bombeamento dos ventrículos, visando diminuir o estresse na parede da aorta e evitar a tendência de propagação da dissecção. No caso de complicações, como ruptura da artéria ou má perfusão dos órgãos, o paciente deve ser direcionado para tratamento cirúrgico.
Por outro lado, as dissecções do tipo A são emergências cardiovasculares e requerem intervenção cirúrgica de urgência.
Existem diferentes técnicas cirúrgicas que podem ser utilizadas no tratamento da dissecção aórtica, com abordagens tanto endovasculares quanto com cirurgias abertas. A mais comum é a de enxerto supracoronariano com ressuspensão da valva aórtica, usada no tratamento da dissecção tipo A. A abordagem cirúrgica tem por objetivo restaurar o fluxo no lúmen verdadeiro do vaso e ressecar o ponto primário de dissecção, evitando complicações da condição.
Cirurgia de Enxerto Supracoronariano com Substituição da Valva Aórtica na Dissecção Aórtica tipo A - Procedimento de Bentall
O procedimento de Bentall é recomendado no caso de dissecções em que suspeita-se de função anormal da valva aórtica, ocorrendo substituição dela. Inicialmente, é realizada uma canulação para instalação de bypass cardiopulmonar. Podem ser usadas para canulação as artérias femorais, subclávias, axilares e o lúmen verdadeiro da aorta ascendente acometida.
Figura 4. Exemplo de canulação. Canulação da artéria femoral para bypass cardiopulmonar
A cirurgia é feita com esternectomia e abertura do pericárdio. Segue-se dissecando cuidadosamente a região ao redor da aorta. É realizada a canulação da veia cava superior e do seio carotídeo. O bypass é estabelecido com a artéria de escolha e, em seguida, o paciente é resfriado até cerca de 20ºC.
Após início do bypass, a aorta é clampada e seccionada, logo acima da junção sino tubular.
Figura 5. Secção da aorta logo proximalmente, próxima a junção sinotubular.
A região é dissecada para preparar a raiz da aorta para substituição por prótese, inclusive as origens das artérias coronárias direita e esquerda. As camadas de tecido com dissecção são removidas, assim como a porção da aorta logo acima dos óstios das coronárias. Em seguida, a aorta ascendente, até próximo ao arco da aorta, é aparada e removida. Se na parte restante da artéria ainda existirem camadas separadas pela dissecção, é usada biocola para tecidos para unir as camadas do vaso. O uso da biocola é feito com preenchido do lúmen arterial com gaze, para garantir maior estabilidade e evitar o espalhamento da cola.
Figura 6. Uso de biocola para junção das camadas do tecido aórtico com dissecção, com o lúmen do vaso preenchido por gaze para melhor técnica cirúrgica.
Uma faixa de material semelhante a teflon é posta em torno da circunferência da artéria e é fixada à parede arterial com suturas prolene.
Figura 7. Fixação de faixa de teflon na circunferência da aorta, em porção proximal ao arco aórtico
A intenção é realizar uma anastomose de ponta a ponta, da porção proximal do arco aórtico até a raiz aórtica, com o enxerto. Primeiramente, é feita a anastomose distal do enxerto com a região proximal do arco aórtico. Após a conclusão e teste da anastomose - buscando vazamentos na sutura com promoção temporária do fluxo de sangue no local -, a atenção é voltada para a substituição da raiz e da valva aórtica, para posterior anastomose proximal.
A valva aórtica é dissecada e removida.
Figura 8. Enxerto já fixado junto ao arco aórtico e preparação da raiz da aorta para substituição pelo enxerto, com dissecação dos botões coronários e remoção da valva aórtica
O tamanho do óstio da valva é medido e o enxerto com a nova válvula é suturado no local. São, então, cortadas no enxerto pequenas aberturas para re-implantação dos botões coronários esquerdo e direito. É realizada a re-implantação, e a anastomose de ponta a ponta é concluída por meio de anastomose dos dois enxertos. Por conseguinte, é feita retirada de ar de dentro do coração, através de uma agulha colocada na porção proximal a raiz aórtica do enxerto, e, finalmente, a retirada do clamp que mantinha a aorta ocluída, com suspensão do bypass e restauração do fluxo local.
Figura 9. Nova válvula aórtica e enxerto para raiz da aorta posicionados e fixados
Figura 10. Anastomose ponta a ponta concluída e agulha inserida na porção mais proximal do enxerto (identificada pela estrutura em azul claro) para retirada de ar do interior das câmaras cardíacas.
Figura 11. Reparo da dissecção aórtico concluído, com substituição de parte da aorta ascendente, raiz da aorta e valva aórtica.
Considerações Finais
A dissecção aórtica é uma condição clínica de extrema relevância. Apesar de pouco frequente, configura importante ameaça à vida do paciente, especialmente a de tipo A, demandando rápida identificação e tratamento, já que, a cada hora após o início dos sintomas, o risco de evolução para óbito aumenta. Tendo em vista as diversas apresentações clínicas que pode exibir e os sintomas semelhantes a outras emergências cardiovasculares, seu diagnóstico pode ser extremamente desafiador. Sendo assim, é essencial se atentar para a existência e gravidade da condição, buscando uma intervenção cirúrgica rápida e efetiva que permita um melhor prognóstico aos pacientes acometidos.
Referências
GAWINECKA, J.; SCHÖNRATH, F.; VON ECKARDSTEIN, A. Acute aortic dissection: pathogenesis, risk factors and diagnosis. Swiss medical weekly, v. 147, n. August, p. w14489, 2017.
GUDBJARTSSON, T. et al. Acute type A aortic dissection–a review. Scandinavian Cardiovascular Journal, v. 54, n. 1, p. 1–13, 2020.
MARROUSH, T. S. et al. Painless Aortic Dissection. American Journal of the Medical Sciences, v. 354, n. 5, p. 513–520, 2017.
NADOUR, W. et al. Silent aortic dissection presenting as transient locked-in syndrome. Texas Heart Institute Journal, v. 35, n. 3, p. 359–361, 2008.
PARVE, S.; ZIGANSHIN, B. A.; ELEFTERIADES, J. A. Overview of the current knowledge on etiology, natural history and treatment of aortic dissection. Journal of Cardiovascular Surgery, v. 58, n. 2, p. 238–251, 2017.
YANAMADALA, A.; KUMAR, S.; LICHTENBERG, R. It is a medical emergency! Act fast: A case report of painless aortic dissection. European Heart Journal - Case Reports, v. 3, n. 2, p. 1–5, 2019.
YANG, B. et al. Short and Long term Outcomes of Aortic Root Repair and Replacemnet in Patients Undergoing Acute Type A Aortic Dissection Repair: 20-year Experience. Journal of Thoracic Cardiovascular Surgery, v. 157, n. 6, p. 2125–2136, 2019.
RAMCHANDANI, M; SPOONER, A; ZUBAIR, M. Acute Type-A Aortic Dissection Repair with Bentall Procedure. https://www.youtube.com/watch?v=LGulbbvLjng
Imagens Procedimento de Bentall: RAMCHANDANI, M; SPOONER, A; ZUBAIR, M. Acute Type-A Aortic Dissection Repair with Bentall Procedure. https://www.youtube.com/watch?v=LGulbbvLjng
Opmerkingen