Matheus Rampinelli Tofanelli, acadêmico de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Experimentos envolvendo anastomoses vasculares começaram a ser realizados por volta de 1890, mas somente em 1967 o médico sul-africano Christiaan Barnard completou com sucesso o primeiro transplante cardíaco ortotópico. O paciente receptor, de 54 anos de idade, permaneceu vivo por 18 dias após a operação, falecendo em decorrência de uma pneumonia por Pseudomonas. O primeiro transplante cardíaco no Brasil ocorreu 6 meses depois e foi realizado por Euryclides Zerbini. À época, os escassos conhecimentos acerca do processo de rejeição restringiram os avanços do transplante cardíaco até a descoberta, em 1978, das propriedades imunossupressoras da ciclosporina A. Desde então, foi possível o desenvolvimento de diversos avanços técnicos e a melhora substancial dos desfechos pós-operatórios. [1, 2] No ano de 2018, 3440 transplantes foram realizados no mundo, sendo 473 deles em receptores pediátricos e 2967 em receptores adultos. [3] Já no Brasil, tanto em 2017 quanto em 2019, foram realizados 380 transplantes cardíacos, tendo sido, até o momento, os anos de maior realização deste procedimento no país. [4]
INDICAÇÕES E CONTRAINDICAÇÕES
O transplante cardíaco é, atualmente, a abordagem cirúrgica definitiva considerada padrão-ouro no tratamento de insuficiência cardíaca (IC) refratária, situação em que o paciente apresenta grande limitação funcional e elevada mortalidade, possibilitando, assim, melhora da qualidade de vida e da sobrevida. [5, 6] Dessa forma, devem ser considerados para o transplante cardíaco pacientes que mantêm classe funcional III e IV, internações recorrentes e apresentam marcadores de mau prognóstico. [5] A avaliação do teste cardiopulmonar é muito útil, principalmente dos parâmetros de consumo de oxigênio (VO2) e de equivalente ventilatório de dióxido de carbono (VE/VCO2), visto que possuem forte correlação com o prognóstico da IC. [5, 7]
As contraindicações ao transplante cardíaco normalmente envolvem a presença de comorbidades que limitem a sobrevida ou que dificultem os tratamentos cirúrgicos e clínicos do receptor. Assim, a hipertensão pulmonar fixa, com valores elevados de resistência vascular pulmonar, constitui um fator limitante, uma vez que está associada à falência precoce do ventrículo direito no pós operatório. [5, 8] Algumas limitações transitórias a serem consideradas são as infecções e as neoplasias, visto que podem ser revertidas e permitir, posteriormente, a elegibilidade terapêutica do paciente. As principais indicações e contraindicações para o transplante cardíaco estão organizadas no Quadro 1. [5]
Quadro 1. Indicações e Contraindicações ao Transplante Cardíaco. Retirado de: Mangini et al. [5]
TÉCNICAS CIRÚRGICAS DO TRANSPLANTE CARDÍACO
Duas modalidades técnicas de transplante cardíaco são realizadas atualmente: a ortotópica e a heterotópica. No transplante cardíaco ortotópico, técnica mais amplamente usada na era moderna, o coração do receptor é removido e substituído pelo coração do doador. Pode ser subdividido em duas técnicas anastomóticas, sendo elas a bicaval e a biatrial. No transplante cardíaco heterotópico, o coração do doador é transplantado e o coração do receptor permanece no local. [1, 9]
Acerca do procedimento cirúrgico, é importante, antes de tudo, realizar um planejamento cuidadoso de toda a operação no receptor, na tentativa de limitar o tempo de isquemia do órgão doado para menos de 6 horas e, preferencialmente, menos de 4 horas. [10]
A retirada e preparação do coração do doador inicia-se pela separação da aorta e das artérias pulmonares. Na parede atrial esquerda, são realizadas incisões entre cada uma das 4 veias pulmonares, que são posteriormente conectadas retirando-se o excesso de tecido, a fim de criar uma borda contínua lisa. Para a técnica bicaval, a veia cava superior é seccionada à altura da abertura da veia ázigo (Figura 1) e, para a técnica biatrial, a veia cava superior é duplamente ligada e o átrio direito é aberto a partir da lateral da veia cava inferior em direção à aurícula direita, de modo a evitar o nó sinoatrial. [10]
Figura 1. Preparação do Coração do Doador. Ao = Aorta; IVC = Veia Cava Inferior; SVC = Veia Cava Superior; LA = Átrio Esquerdo. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Com relação ao transplante cardíaco ortotópico, a operação no receptor é iniciada por meio de uma esternotomia mediana e, em seguida, é realizado o preparo para o estabelecimento da circulação extracorpórea (CEC), através da canulação aórtica e das veias cavas (nestas, preferencialmente, com o uso de cânulas de pontas metálicas com ângulo reto) o mais distalmente possível. (Figura 2) Prossegue-se, então, para a realização da cardiectomia (excisão do coração), que usualmente é completada no mesmo momento em que o coração do doador chega à sala de operação. O paciente é colocado em circulação extracorpórea, com clampeamento cruzado da aorta e aperto dos laços ao redor das veias cavas. Secções transversais são feitas nas porções proximais do tronco pulmonar e da aorta. No átrio esquerdo, realiza-se uma incisão extensa, que deixa parte do tecido atrial posterior, preservando os orifícios das 4 veias pulmonares. [10] Na técnica biatrial, é feita a secção ao longo do átrio direito, preservando sua porção posterior, semelhante ao que ocorre no átrio esquerdo. [11] Por outro lado, na técnica bicaval, a veia cava superior é seccionada transversalmente à altura da junção cavoatrial. Inferiormente, é realizada uma secção do átrio direito em sua porção adjacente à veia cava inferior. Após todas as secções, o coração do receptor é, então, retirado. (Figura 3) [10]
Figura 2. Preparação para a operação no receptor. Ao = Aorta; IVC = Veia Cava Inferior; SVC = Veia Cava Superior; PA = Artéria Pulmonar. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Figura 3. Cardiectomia no receptor. Ao = Aorta; SVC = Veia Cava Superior; PA = Artéria Pulmonar; LA Cuff = Tecido remanescente do Átrio Esquerdo. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Na técnica de anastomose bicaval, inicia-se realizando a anastomose atrial esquerda, por meio da sutura com um longo fio Prolene 3-0, que começa nas margens posteriores e termina anteriormente. (Figura 4A) Em seguida, as anastomoses das veias cavas inferior e superior são normalmente realizadas por meio de suturas com fios Prolene 3-0 e 4-0, respectivamente. (Figura 4B) É feita, então, a anastomose da artéria pulmonar e, por fim, completa-se com a anastomose aórtica, ambas utilizando fios de sutura Prolene 4-0. (Figura 4C) [10]
Figura 4. Transplante Cardíaco Ortotópico: Técnica de Anastomose Bicaval. PA = Artéria Pulmonar; LA Cuff (recipient)= Tecido remanescente do Átrio Esquerdo do receptor; LAA = Aurícula Esquerda. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Na técnica de anastomose biatrial, a anastomose inicial no átrio esquerdo é realizada da mesma maneira que na técnica bicaval. A anastomose atrial direita, por sua vez, inicia-se na extremidade superior da incisão atrial. Utiliza-se uma longa sutura com fio Prolene 3-0 e suas extremidades são transportadas tanto inferior quanto superiormente, para primeiro completar a anastomose do septo interatrial, unindo-se em seguida na parede lateral do átrio. As anastomoses da artéria pulmonar e da aorta são realizadas conforme descrito anteriormente. (Figura 5) [10]
Figura 5. Transplante Cardíaco Ortotópico: Técnica de Anastomose Biatrial. SVC = Veia Cava Superior; LA wall complete = Sutura completa na parede do Átrio Esquerdo; SVC ligated = Veia Cava Superior ligada. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Após a conclusão de todas as anastomoses, solumedrol (metilprednisolona) IV é administrado, o paciente é colocado na posição de Trendelenburg e manobras para retirada de ar são realizadas. O clampeamento cruzado da aorta é removido com sucção na raiz da aorta. Tempo suficiente é permitido para reperfusão tecidual. Durante esse tempo, todas as linhas de sutura são inspecionadas cuidadosamente quanto à hemostasia, especialmente áreas como a linha de sutura do átrio esquerdo, que seria extremamente difícil de visualizar após o término da circulação extracorpórea. São colocados fios de estimulação temporários no átrio direito e no ventrículo direito. O suporte inotrópico apropriado também é iniciado durante o período de reperfusão. Alguns receptores podem ter necessidade de terapia vasodilatadora pulmonar agressiva, incluindo óxido nítrico. O paciente é posteriormente retirado da circulação extracorpórea da maneira usual. É também utilizada ecocardiografia transesofágica intraoperatória para confirmar o funcionamento adequado do coração implantado e documentar a função ventricular e a competência valvar. Por fim, drenos torácicos são colocados, incluindo drenagem adequada do espaço pericárdico posterior, visto que esses pacientes apresentam risco aumentado de desenvolverem derrames pericárdicos pós-operatórios. (Figura 6) [10]
Figura 6. Transplante Cardíaco Ortotópico Completo. Pacing wires = Fios de estimulação. Adaptado de: R. John and K. Liao. [10]
Ambas técnicas anastomóticas (bicaval e biatrial) podem ser realizadas de forma segura com excelentes desfechos em longo-prazo em pacientes com insuficiência cardíaca terminal. A técnica bicaval, por sua vez, preserva a morfologia atrial normal, e as funções sinusal e valvular. Em razão disso, tem sido consistentemente associada a incidências reduzidas de arritmias atriais e de necessidade de implantação de marcapasso. No entanto, podem-se citar o tempo mais elevado de isquemia e a possibilidade de estreitamento das anastomoses cavais como potenciais desvantagens para esta técnica. [10]
Tendo em consideração o transplante cardíaco heterotópico, sua técnica é realizada, inicialmente, por meio da anastomose do átrio esquerdo do órgão doado ao átrio esquerdo do receptor. Em seguida, o átrio direito do coração doado é anastomosado ao átrio direito do receptor e à veia cava superior. Depois, é feita a sutura da aorta do doador com a aorta do receptor. Por fim, resta somente a anastomose da artéria pulmonar, que, por sua vez, é suturada a um enxerto de dacron (politereftalato de etileno), utilizado para estender a anastomose até a artéria pulmonar do receptor. Sem a interposição do enxerto, não seria possível juntar as duas artérias sem tensão, devido à ausência de comprimento suficiente no tecido do doador. (Figura 7) [12, 13, 14] Em relação ao transplante ortotópico, a técnica heterotópica é raramente realizada, sendo indicada principalmente nas cinco seguintes situações: (1) hipertensão pulmonar, (2) suporte circulatório sistêmico do coração nativo em caso de falha primária do enxerto, (3) suporte circulatório do coração nativo em caso de rejeição severa, (4) corações doados “pequenos” e (5) corações doados comprometidos (aqueles com isquemia prolongada e alto risco de complicações). [12]
Figura 7. Transplante Cardíaco Heterotópico. Ao = Aorta; PA = Artéria Pulmonar; LV = Ventrículo Esquerdo; Donor right atrium = Átrio direito do doador; Recipient right atrium = Átrio Direito do Receptor; Recipient = Receptor. Adaptado de: J. Copeland and H. Copeland. [12]
TRATAMENTO PÓS-TRANSPLANTE E COMPLICAÇÕES
A rejeição ao enxerto é uma das principais complicações advindas do transplante cardíaco. Desse modo, para reduzir sua incidência, os pacientes devem ser submetidos, após o transplante, a uma terapia imunossupressora. A terapia de manutenção com esquema tríplice, que inclui um corticosteroide, um inibidor de calcineurina (ciclosporina ou tacrolimus) e um antiproliferativo (micofenolato ou azatioprina), é a terapêutica mais utilizada rotineiramente na maioria dos serviços. Em aproximadamente metade dos centros transplantadores, também se utiliza a terapia de indução, que consiste no tratamento imunossupressor intenso durante o transplante ou em seu pós-operatório imediato. Os medicamentos utilizados na indução padrão são as imunoglobulinas antitimócitos policlonais (anticorpo policlonal − timoglobulina − ATS) e os antagonistas dos receptores de IL-2 (anticorpo monoclonal IgG humanizado − basiliximab). [15]
Dentre as principais complicações precoces associadas ao transplante cardíaco, podem ser citadas as infecções, especialmente por agentes oportunistas devido à terapia imunossupressora utilizada, a disfunção primária do enxerto e a disfunção do ventrículo direito secundária à hipertensão pulmonar. As principais complicações tardias são constituídas pela doença vascular do enxerto, uma patologia multifatorial de natureza aterosclerótica, e pelas neoplasias. Estas, por sua vez, estão intimamente relacionadas ao esquema imunossupressor e incluem tumores malignos relacionados a infecções virais, como linfoma não Hodgkin e linfoma Hodgkin (vírus Epstein-Barr), sarcoma de Kaposi (herpes-vírus humano 8), cânceres anogenitais (HPV) e câncer hepático (vírus das hepatites B e C). [5]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O transplante cardíaco é um procedimento cirúrgico que vem sendo utilizado há mais de 50 anos e constitui-se como o padrão-ouro para o tratamento da insuficiência cardíaca em estágio terminal. O manejo cirúrgico destes pacientes pode ser realizado por meio de duas técnicas distintas: a ortotópica, na qual o coração do receptor é substituído pelo do doador; e a heterotópica, na qual o coração do doador permanece funcionando junto ao coração transplantado. A técnica mais utilizada atualmente é a ortotópica, que pode ser dividida em dois subtipos (bicaval e biatrial), conforme as técnicas anastomóticas utilizadas, sendo a bicaval mais associada a melhores prognósticos. Além disso, em razão do alto risco de rejeição ao enxerto, estes pacientes devem ser submetidos a um esquema terapêutico imunossupressor, além de receberem acompanhamento para o controle de eventuais complicações advindas do procedimento cirúrgico ou da própria imunossupressão. Por fim, é importante ressaltar que, no Brasil, somente 11% dos doadores são utilizados nos transplantes cardíacos. Dessa maneira, espera-se que, a partir de avanços nas estratégias de manejo dos órgãos doados e dos receptores, haja maior aumento no número de doadores efetivos, de modo a impactar positivamente os resultados dos transplantes cardíacos e proporcionar melhor qualidade de vida aos pacientes transplantados. [5]
REFERÊNCIAS
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[2] DiBardino DJ. The history and development of cardiac transplantation. Texas Heart Institute Journal. 1999;26(3):198.
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[4] Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2012-2019). Registro Brasileiro de Transplantes. 2019;25(4):1-04.
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[15] Bacal Fernando, Marcondes-Braga Fabiana G., Rohde Luis Eduardo Paim, Xavier Júnior José Leudo, Brito Flávio de Souza, Moura Lídia Ana Zytynski et al. 3ª Diretriz Brasileira de Transplante Cardíaco. Arq. Bras. Cardiol. [Internet]. 2018 Aug [cited 2020 Nov 13]; 111(2): 230-289. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0066-782X2018001400230&lng=en. https://doi.org/10.5935/abc.20180153.
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